Por Laura Sánchez
Não foi só a motivação pessoal que me incentivou estudar a História Intelectual das Mulheres durante o mestrado, e sim, várias. No meu percurso de vida há fatos que mostram como a escolha da temática tem a ver com a minha própria história. Esse interesse no estudo de personalidades intelectuais já vem desde a minha adolescência e quiçá até antes.
Eu nasci em Barcelona, na Espanha, em plena ditadura franquista, já caminhando para um período de mudanças e de reivindicações no qual o povo reclamava pela liberdade de expressão e pela democracia. A maioria dos colégios ainda separavam meninas dos meninos em uma educação escolar religiosa que foi obrigatória até 1980. E essa foi a escola que frequentei na infância e adolescência, ao meu modo de pensar e sentir, em um ambiente separatista e sufocante.
Após ter adentrado nos estudos oitocentistas durante estes últimos dois anos, através do universo da educadora Nísia Floresta, surgem reflexões de como deve ter sido difícil para uma mulher do seu tempo não só lutar pelo direito à educação das mulheres assim como criar, inaugurar e dirigir um colégio no Rio de Janeiro destinado a meninas. Lá elas teriam acesso a disciplinas de maneira igualitária aos homens.
O que essa mulher não enfrentou? E nós mulheres hoje, do século XXI, o que ainda não enfrentamos nesta sociedade quando se trata de provar nossa valia intelectual?
Essa separação de gêneros me causava na época inquietação, pois no meu entendimento de menina os conteúdos a serem estudados deveriam ser os mesmos, independente do gênero. Questionava-me intimamente, qual seria o motivo para não estarem todos juntos na mesma sala de aula com os mesmos professores?
Mais tarde, descobre-se que era para evitar possíveis relacionamentos ou “roces pecaminosos” entre gêneros e, porque, para as meninas estavam destinados discursos ético-religiosos de outra índole que faziam ênfase no papel da mulher na sociedade como sendo mãe exemplar de família, obediente ao marido e educadora na fé cristã dos filhos, discurso, aliás, muito similar ao da época nisiana com séculos de diferença.
Eu não me sentia confortável com aquelas aulas, porque desde aquela idade não desejava me casar, ainda menos de branco e ter filhos. Mesmo que minha família fosse católica, não era praticante. Minha mãe, já no ano de 1967, tinha se casado na igreja de vestido branco, porém curto – minissaia – um escândalo para a época e meu pai tinha uma profissão chamada então de “liberal” que consistia em fazer fotografias e reportagens para o mundo artístico, o que incluía retratar mulheres sem roupa na década de 70. As fotografias eram feitas no seu estúdio, que estava localizado num espaçoso quarto adaptado na nossa própria casa familiar.
Desses assuntos eu não podia falar na escola, mas lembro de uma vez que comentei com umas colegas mais íntimas de sala algumas das minhas ideias e dos hábitos da minha família e meus pais foram chamados na direção e ameaçaram nos expulsar da escola.
Apesar dos meus pais serem personalidades de ideias avançadas, modernas para sua época e grandes leitores, o ambiente familiar não favorecia ao estudo. Por isso, não consegui terminar o EGB, equivalente ao ensino médio no Brasil, repetindo o 3º e 6º curso e saindo da escola no 7º de EGB.
Meus pais separaram-se quando eu tinha 11 anos e, sendo a filha mais velha, fiquei cuidando da casa e das minhas três irmãs menores com apenas 13 anos de idade.
No século XIX, as mulheres casavam com essa idade, a exemplo de Nísia que se casou com 13 anos. Porém, eu, mulher nascida no século XX, questiono: se eu fosse homem teria ficado em casa cuidando das minhas irmãs ou teria continuado na escola?
Esse acontecimento marcou minha autoestima intelectual que ficou diminuída, mas nunca abandonei a ideia e o sonho de um dia retomar os meus estudos e escrever um livro.
Eu gostava de matérias como História, e todas as disciplinas que tinham relação com expressão escrita. Com 14 ou 15 anos retomei minha escolarização em uma escola de adultos com o chamado curso “Graduado escolar” e participei de um concurso de redação. Não me esquecerei da minha felicidade e emoção quando o professor em sala de aula apontou à originalidade de minha escrita e enfatizou que eu nunca poderia deixar de escrever na minha vida. Foi este quiçá, o único momento de autoestima intelectual que vivencie na minha trajetória escolar até aquela data. Porém, não consegui passar por todas as matérias e abandonei desanimada novamente o curso.
Passei anos sem escolarização novamente e quando a tarde caía e já tinha realizado minhas tarefas domésticas, sentava-me à mesa da cozinha acendia uma luz tênue, com o intuito de imitar a luz de uma vela, pois adorava recriar cenários oitocentistas e começava a escrever o que imaginava ser uma grande obra. Desejava ser uma grande escritora que dedicava sua vida aos livros.
A vida foi passando e morei em várias cidades da Espanha, outros países onde aprendi línguas e sempre escrevi e estudei de modo autodidata, mas sem voltar às aulas formais, por medo a um novo fracasso. No entanto, paradoxalmente nesse meio tempo publiquei vários artigos em revistas científicas internacionais de forma independente sobre assuntos do meu interesse.
Meu gosto pelo estudo da História crescia e interessava-me especialmente a relação do gênero feminino com a intelectualidade. Saber como as mulheres apesar das pressões próprias da sua época conseguiram estudar e manifestar por meio da escrita suas ideias. Estudei várias intelectuais espanholas desse século e quis conhecer com detalhes de que forma se dava a participação das mulheres intelectuais do século XIX nos assuntos da vida e quais eram seus hábitos diários.
E foi assim, a partir do estudo de mulheres intelectuais espanholas do século XIX, que cheguei até a personalidade da escritora e educadora nordestina Nísia Floresta Brasileira Augusta (1801–1885), um exemplo de empenho e determinação intelectual.
Em 2015, publiquei um livro em língua portuguesa e hoje continuo minha carreira universitária iniciando o doutorado na mesma universidade em que formei – a Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. Também há previsão da publicação de um livro sobre Nísia Floresta neste mesmo ano. Hoje sei de uma coisa, se de eu depender, nunca deixarei de escrever, pois há conquistas que devem ser honradas.